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Entrevista com Pai Guga

Mergulhar requer coragem. Um ato solitário em que, quanto mais profundo, mais imprevisível é o que pode se encontrar. Apesar disso, essa investigação individual e oceânica pode reservar verdadeiros tesouros.
Em “O Túmulo do Mergulhador”, pai guga decidiu afundar em questões pessoais com uma honestidade nunca antes vista e recompensa o ouvinte com um trabalho essencialmente íntimo, mas capaz de se conectar com as vulnerabilidades de muitos.
Eu conversei com o artista de Volta Redonda sobre a produção do seu primeiro disco em carreira solo, além de temas como paternidade, vida no interior e internet. Assim como o disco nos conduz a um mergulho, é impossível conversar com Guga Valiante e permanecer no raso. Confira.
A paternidade está muito presente no seu trabalho. Desde o nome artístico que você escolheu para o projeto, até às letras. Como que a paternidade, sendo pai e filho, reverbera no seu novo trabalho?
A minha história na música foi construída com a banda Amplexos, ao longo de quase 15 anos. Tudo que aprendi foi feito com esses caras e, por muito tempo, eu não imaginava que pudesse viver sem a banda.
Mas, na virada de 2018 para 2019, a gente decidiu fazer uma pausa e nosso último show seria abrindo para os Paralamas, numa apresentação de Ano Novo. E antes de entrar no show, no camarim, eu recebi a notícia de que a minha esposa estava grávida da Maria, minha primeira filha.
Com essa pausa, eu tive a oportunidade de me dedicar completamente à paternidade. Eu via muitas pessoas exercendo uma paternidade pouco presente e, de alguma forma, eu quis fazer diferente.
Essa é minha principal tarefa de vida: exercer minha paternidade de uma forma que considero saudável e isso inclui estar feliz. Porque quando você está fazendo algo com excelência, com alegria e amor, a criança percebe.
Desde que a paternidade apareceu na minha vida, ela foi a primeira coisa para mim. Eu acho que o meu nome “pai guga” vem daí, sabe?
Mas, de alguma forma, estar longe do palco, foi me deixando doente. Eu estava preenchido pelo lado familiar, mas havia um buraco em mim, porque o que mais amo fazer não estava preenchido.
Então, eu comecei lentamente a fazer um exercício de composição e fui lançando alguns singles, já com o nome de “pai guga”. Era uma forma de exercitar o meu lado artista dentro de um contexto totalmente diferente.
Eu acho que, inconscientemente, esse nome veio de uma vontade de ampliar esse diálogo sobre a paternidade, levantar questões sobre masculinidade, sobre novas formas de se relacionar em relação à sexualidade, a comportamento, a performance, tudo isso.
Eu tenho um receio de virar uma referência de paternidade perfeita e não é essa a minha intenção, porque estou realmente aprendendo todo dia, entre erros e acertos. A minha intenção é me colocar nessa função agregadora e abrir esse diálogo com outros pais.
A paternidade é onde eu me sinto mais completo. Então, fatalmente, isso vai aparecer na minha música.
Como que foi o processo criativo nessa nova jornada solo? São 15 anos de história com a Amplexos, o que foi mais contrastante?
Eu acho que a principal diferença é até mais subjetiva. Quando estava escrevendo para a banda, eu fazia questão de falar coisas que representavam o grupo. Com meu trabalho solo, eu busquei falar de mim, de histórias minhas, questões muito profundas e que jamais conseguiria falar com a banda.
Desde o início, a minha ideia era trazer pequenas sementes que pudessem me inspirar a escrever essas músicas. Então, esses estímulos foram aparecendo, eu ficava ali o dia inteiro ouvindo e deixando aquilo me dizer coisas. Beats, cortes de outras músicas, fotos, vídeos, tudo me serviu.
Esse disco foi feito em um ano. Eu não tinha nenhuma música pronta, apenas a ideia. Foi um processo diverso, mas tiveram essas peculiaridades de regras que coloquei pra mim.
Uma das regras eram os estímulos externos. Outra foi que eu precisava tocar em pontos que eu nunca tinha tocado, falar de coisas íntimas, que era um jeito de fazer música que eu nunca tinha feito.
O disco foi produzido por mim, pelo Gato e pelo Raphael Garcêz.
O Garcêz é um cara da minha geração, um grande amigo meu e um músico brilhante, admirado na região. Eu chamei ele pelo talento na produção, mas também porque ele me conhece demais e, nesse trabalho, eu não queria repetir nada que eu já tinha feito.
E o Gato é um cara com uns 10 anos a menos que eu. Desde o início, eu queria alguém que tivesse um pensamento mais jovem, uma cabeça mais aberta para as coisas de hoje, com referências mais ligadas à música urbana.
Trabalhar com os dois foi muito fácil porque eles captaram muito o que eu estava querendo.
Se o Amplexos era mais focado num processo com resultado coletivo, “O Túmulo do Mergulhador” é um processo mais focado no indivíduo, na saga, na jornada. A escolha dos temas, do som que eu queria, as referências são muito mais focadas nessa experiência íntima.

Eu queria saber um pouquinho da sonoridade do disco. Ele é bastante diverso, sobrevoa vários gêneros. Como vocês chegaram a essa sonoridade?
A ideia do álbum foi tomando forma na minha cabeça como algo que apontasse pra frente. Um futuro saudável, onde eu não estivesse mais com toda essa minha questão de saúde mental. Então, a sonoridade não poderia ser diferente.
Eu sempre quis trazer essa minha ancestralidade. Uma parte da minha família vem da Itália e outra da Espanha. Eu quis lembrar a canção tradicional italiana, espanhola. Então, foi uma investigação de memória, mas também uma pesquisa de artistas que poderiam me trazer recortes, samples.
Eu queria uma produção muito construída na base dos beats. Esse foi o grande desafio: juntar a canção tradicional com o contemporâneo.
Pela pesquisa e pelas músicas que foram surgindo, a gente acabou incorporando elementos. Um desses elementos foi o drum and bass e o jungle. Mais pra parte final do álbum, eu fui entender que eu consumi muito esse som na minha juventude e que veio de uma forma avassaladora no disco. Esse som estava na MTV, no catálogo da gravadora Trama, enfim.
O disco que eu imaginava antes de começar o projeto não é o disco que saiu. Eu encontrei coisas pelo caminho. Você começa a pesquisar e de repente começa a enxergar aquilo em tudo.
Além disso, acho que eu fui feliz na escolha dos músicos. Inicialmente, eu não queria uma guitarra. Mas à medida que as músicas foram surgindo, começou a me dar a vontade de ter essa guitarra rasgada que me lembra Fagner.
Na hora, a referência que eu tinha era o Fernando Catatau. Eu sempre o ouvi, desde o Cidadão Instigado, até os projetos em que apenas tocava guitarra.
Apesar de estar em três músicas, ele trouxe uma parada pro disco. Então, eu fui muito feliz em trazê-lo e juntá-lo com o Marlon Sette, Jorge Continentino e Diogo Gomes, que é o trio de metais que tá no disco.
Eu tenho muito orgulho de ter conseguido juntar o Catatau com esses caras dos metais e mais a minha galera aqui de Volta Redonda, sabe?
O Hugo Cunha também tocou no disco, um guitarrista brilhante de Volta Redonda. É um cara que eu escuto desde moleque e convidei pra tocar violão porque ele tinha a parada da música flamenca, da música espanhola.
A sonoridade final do disco não é o que tava na minha cabeça, mas o resultado é melhor do que eu imaginava.
Você comentou que o disco reúne artistas de diferentes regiões que se encontram com a galera da sua região, de Volta Redonda. Como é ser um artista independente que está fora do eixo?
Volta Redonda fica entre Rio e São Paulo. A cidade foi construída a partir da CSN, que é a maior siderúrgica da América Latina. Veio gente de todos os lugares para cá, é um povo com um pouco do mineiro, um pouco do carioca, um pouco do paulista.
A gente tem músicos excelentes aqui. Mas, é uma cidade que carece de investimento cultural. Principalmente, lugares para tocar e um público interessado.
Até meados de 2018, a gente tinha uma cena. Mas, com toda a questão política, isso foi morrendo. Sem puxar a sardinha para o meu lado, mas eu acho que a pausa da Amplexos também impactou esse cenário. Claro que não era a gente sozinho, mas a gente conseguia fazer a coisa circular.
Quando veio o governo Bolsonaro, depois a pandemia, tudo mudou. Hoje em dia é muito mais difícil circular. A gente costuma falar que para alguma coisa acontecer, a gente tem que pegar e fazer.

Pra mim, estar em Volta Redonda é um misto de sentimentos. Sempre foi um desafio por ser interior. Ao mesmo tempo que a gente está próximo de Rio e São Paulo, a gente não está no Rio nem em São Paulo. Apesar da internet, eu acho que a gente ficou meio isolado.
Mas essa questão de estar isolado, em uma cidade conservadora do interior, também gera uma arte que é resposta a tudo isso.
Aqui, temos artistas aqui que são muito bons. Eu posso falar da Amplexos, mas, a gente também tem o Thiago Elniño, o Beat Bass High Tech, o Sta. Marta Jazz, o Bianco Marques e a Natache, que é uma cantora que está para gravar o primeiro trabalho dela.
Aí tem a história, né? Tânia Maria, uma figura lendária pra Volta Redonda. Tem Carlos Henrique Machado, que é um músico de chorinho e tem um projeto maravilhoso que é o Vale dos Tambores. Posso citar o Quinteto Veracruz, que também é um grupo de choro daqui, ligado ao Carlos Henrique. Cara, tem muitos artistas incríveis aqui.
Eu acredito que estamos chegando num momento em que a internet se transforma e os pequenos shows vão ser fundamentais novamente. Eu acredito na cena de Volta Redonda renascendo, de alguma maneira.
Esse retorno a um encontro real, mais humano e caloroso… Você vê isso como algo que está prestes a acontecer ou é um desafio que a gente ainda precisa enfrentar?
Eu sinto que são as duas coisas. O público geral se acostumou com as facilidades dos algoritmos e isso reflete no comportamento para shows e eventos. Hoje em dia eu sinto que é muito mais difícil a gente sair para assistir um show, até mesmo sair para encontrar um amigo que seja. Ao mesmo tempo, a gente pode estar aqui, trocando ideia, se conhecendo a partir da internet.
Enquanto a gente vê muitos festivais fazendo uma curadoria próxima do algoritmo, os SESCs abrem espaço para artistas que estão em um momento de consolidação. Mas, tem um ponto principal no que eu quero dizer, que são os movimentos do interior. É no interior que se constrói a base, onde as coisas nascem de forma espontânea.
Eu bato muito na tecla de tentar fazer esse movimento a partir do interior, fazendo crescer o movimento até chegar às capitais de forma consistente.
Levando para um lado mais poético, o interior é dentro da gente. Eu sinto que esse ímpeto tem que surgir dentro dos artistas. A partir daí, a coisa vai sendo externalizada em pequenos shows, pequenos coletivos, pequenos movimentos.
Eu acho que esse consumo passivo, tende a se esgotar. Mas, é um movimento que tem que ser feito pelo público, por criação de comportamento de público, estímulo de estado e também da vontade interna de cada artista em querer fazer movimentos que vão para fora.
É um desafio longo que a gente tem, mas que não é para agora.

Na abertura do disco, você fala sobre observar amigos que estão com a vida em movimento. Eu queria saber um pouco dessa percepção. Isso está relacionado ao fazer artístico, ou uma comparação com esse recorte do artista do interior e o artista do grande centro. O que isso significa para você?
É muito bom ouvir as percepções porque acaba adicionando camadas, às minhas próprias interpretações das músicas. Isso é sempre interessante.
A gente chegou num ponto mais delicado desse papo que, no fundo, foi o que me fez iniciar esse trabalho, que é a questão da minha saúde mesmo.
Eu sempre fui um cara que prefere lidar com as minhas questões sozinho. Mas, chegou um ponto que eu precisei pedir ajuda. E eu entendi que eu precisava externar essa minha fraqueza, minhas angústias, que era uma coisa que eu nunca tinha feito, principalmente em música.
Então, quando eu falo sobre ver todos os meus amigos com a vida em movimento, é muito em relação a esse momento que eu passei paralisado. Tem a ver com isso, de observar o movimento ao meu redor e como aquilo me angustiava em saber que eu estava estagnado.
Mas, ainda sobre essa questão, falar sobre isso foi a chave (usando outro termo do disco) para eu conseguir curar aquilo dentro de mim. À medida que ia compondo as músicas, aquilo foi se dissolvendo dentro de mim, de tal maneira que hoje eu consigo revisitar as canções de um jeito muito mais alegre.
A questão da palavra era muito importante no disco, destacando a importância de verbalizar. Como foi para você abrir esse processo de cura pra tanta gente?
Na mesma medida que foi difícil, foi libertador. Eu comecei um pouco travado, me questionando. “Será que é desse jeito que eu tenho que fazer?”.
É sempre difícil tocar em questões assim. À medida que você vai abrindo questões e se investigando, você vai se aprofundando, mergulhando mais ali e vai ficando cada vez mais fundo. É desconfortável. Não foi um processo fácil, mas foi libertador.
É muito curioso como isso atinge as outras pessoas. Acho que a parada que eu mais ouvi ao longo desse tempo foram pessoas falando que se identificaram com as músicas e que pareciam que tinham sido compostas por elas.
Quanto mais focado na sinceridade, mais tem conexão com as outras pessoas, com outras realidades, outras existências. A arte é muito mágica.
Não foi fácil, foi doloroso. Tinha momentos que eu achava que devia jogar tudo fora. Mas muitos momentos também me alegraram com o resultado. Eu entendia que aquilo era um processo para além de fazer um disco. Era um processo meu. Independente do resultado, se saísse ou não, se as pessoas ouvissem ou não, era um processo que eu estava precisando enfrentar.
Você citou vários nomes das pesquisas que fizeram parte do amadurecimento do álbum, quais foram os artistas que você mais ouviu nesta fase?
Talvez a maior referência artística que eu tenho é o Stromae, especialmente o último álbum dele, o Multitude, de 2022. É um cara que eu admiro, que não ficou preso nas coisas antigas. É um cara que evoluiu junto, assim, com o tempo.
Mas também posso falar de C. Tangana, um cantor madrilenho que também faz um pouco dessa fusão do tradicional com o rap, com a música eletrônica.
Além disso, tem uma cantora jovem portuguesa, a Ana Lua Caiano, a Luiza Lian e o próprio dadá Joãozinho.
Fora esses, tem artistas que nunca saíram do meu radar: Gil, Jorge Ben Jor, Caetano Veloso, Itamar Assumpção, Fela Kuti, Bob Marley e Miles Davis.
Agora, com o disco lançado, o que você está planejando? Qual é o foco agora?
A minha ideia é circular com esse álbum. Eu tenho na cabeça que um disco tem que ser trabalhado com calma mesmo. Não é como lançar um single. E eu tô sem pressa, mas tô afim de rodar.

A minha ideia é começar circulando o Rio, São Paulo, um pouco de Minas, lugares que eu já toquei com a Amplexos. Deve rolar alguns vídeos, mas por enquanto não tem nada em produção. Eu também quero registrar essa apresentação daqui da minha cidade, sabe?
Mas, a princípio, o grande projeto é a circulação mesmo. Seja num formato completo com banda, mas também em formato reduzido. Eu quero circular e estou afim, até o final do ano deve rolar.
Tem som para tudo. “O Túmulo do Mergulhador” é som para quê?
“O Túmulo do Mergulhador" é som pra abrir o coração e colocar pra fora os sentimentos que precisam sair.
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